segunda-feira, 23 de maio de 2011

A nova busca pelo Jesus histórico (Milton L. Torres, PhD)






Ao longo da história a pessoa de Jesus sofreu ataques múltiplos e de diversas formas. Um desses ataques mais ferozes foi a negação de sua historicidade; ou seja, que a pessoa de Jesus jamais teria existido. Recentemente, contudo, Jesus tem sido posto sob fogo cerrado em uma perspectiva bastante diferente. Os cientistas agora dizem que eles creem na existência histórica de Jesus, mas que, para conhecer sua pessoa, é necessário eliminar os mitos com os quais Jesus ficou associado por causa dos acréscimos feitos ao registro escrito por seus seguidores. Afirmam eles que Jesus não disse todas as coisas que a Bíblia lhe atribui nem tampouco realizou todos os feitos que as Escrituras registraram como sendo obra Sua. Jesus precisa, nessa perspectiva, ser despido dos antigos mitos que o cercam a fim de que o homem moderno possa ouvir sua verdadeira mensagem.
Uma outra novidade da busca pelo Jesus histórico como ela agora ocorre é que, pela primeira vez, o debate é trazido ao nível do homem comum. Antes disso, as discussões se limitavam ao ambiente acadêmico das universidades secularizadas, mas desde a criação do movimento conhecido como The Jesus Seminar (“o Seminário de Jesus”), as discussões foram trazidas ao forum público. O Seminário de Jesus foi criado em 1985 por Robert Funk e John Dominic Crossan, entre outros, com os objetivos de atribuir um grau de consenso acadêmico às falas atribuídas pela Bíblia a Jesus e de tornar públicas suas descobertas. Seu desejo era “liberar” Jesus dos “mitos” com Ele associados. Assim, muitos dos recentes ataques ao Jesus histórico advêm das tentativas de descobrir o que realmente aconteceu na história. Isso tem produzido uma interessante contradição de métodos e pressuposições entre os cientistas que combinam o otimismo modernista em relação ao método científico, a valorização excessiva da informação nos últimos quinze anos (a assim-chamada “Idade Mídia” ou “Idade Líquida”) e o ceticismo pós-moderno. Essa postura é um reflexo do que N. T. Wright chama de “imperialismo cultural do Iluminismo”, uma atitude que considera que somente nos últimos duzentos anos o homem descobriu o verdadeiro sentido da história. Antes disso, a história teria sido escrita por autores que faziam acréscimos livres ao seu relato, costurando fantasia e lenda em um tecido que chamavam de história.
Os cientistas consideram, agora, que os evangelhos são narrativas nas quais a memória de Jesus foi embelezada pela presença de elementos míticos que expressam a fé da igreja nEle, e por ficções plausíveis que agiam como captadores da atenção dos ouvintes dos primeiros séculos da existência da igreja. Por isso, esses cientistas adotam uma postura que coloca o fardo da prova sobre o texto bíblico. Em outras palavras, todas as atividades que o evangelho atribui a Jesus devem ser consideradas fábulas até que se prove o contrário. Os membros do Seminário de Jesus estão comprometidos com um naturalismo rígido, que inteiramente exclui o sobrenatural do registro histórico. Dessa forma, todos os relatos evangélicos que dizem respeito aos milagres de Jesus devem ser considerados como inautênticos. Eles também negam, de maneira enfática, a possibilidade de Jesus prever o futuro. Como os evangelhos descrevem, com exatidão, a queda de Jerusalém no ano 70, a consequência do naturalismo exagerado desses eruditos é que os evangelhos precisam, então, ter sido escritos depois do ano 70. Em razão disso, os autores do evangelho deixam de ser testemunhas oculares e passam a ser pessoas que coletaram as estórias de Jesus e lhes deram a forma de um relato coordenado.
Por Que Uma Nova Busca pelo Jesus Histórico
            A nova busca pelo Jesus histórico não nega a existência histórica de Jesus Cristo, mas o Jesus que é buscado é bastante diferente daquele apresentado pelo Novo Testamento. As culturas populares abraçam, com determinação cada vez maior, o culto à diversidade. Busca-se um Jesus que esteja disponível para ser moldado conforme as necessidades de cada um: o Jesus de Mel Gibson, o Jesus amante de Maria Madalena, entre outros. O que, porém, impulsiona essa busca? Tive a oportunidade de discutir esse assunto em 2006 com o Dr. Wayne Meeks, professor recentemente aposentado da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, que estava escrevendo um livro, que já foi publicado, intitulado Jesus is the question (“Jesus é a pergunta”). Segundo ele, uma razão para essa tentativa de se criar um Jesus mais ao gosto pós-modernista se deve, principalmente, a uma certa desilusão, agora geralmente compartilhada pelos cientistas, em relação à história. Ele me disse que os cientistas parecem ter finalmente descoberto os pés de barro da história. No passado, as pessoas investigavam a Bíblia com a sensação de que poderiam, mesmo sozinhas, descobrir a verdade das coisas. Após o Iluminismo, parece que o “gênio da dúvida” escapou da garrafa e está, agora, fora de controle. A ciência alterna, então, momentos de confiança em que defende a validade do método científico e outros em que propõe que todas as coisas são relativas. Como resultado disso, quase todos nos tornamos cínicos.
            As alternativas que surgem parecem não ser muitas. Corremos o risco de reverter a um autoritarismo fundamentalista e oportunista ou sucumbir a um relativismo absoluto. E é justamente porque a Cristandade, de modo geral, ora faz uma coisa, ora faz outra que muitos são levados a questionar a historicidade de Jesus. Os riscos do autoritarismo e do relativismo advêm de cinco faltas que tendemos a cometer hoje em relação aos nossos métodos de interpretação bíblica e nossas atitudes religiosas:
1. o hiperliteralismo e o hipersimbolismo
A hipervalorização do literalismo leva-nos a afirmar que dizer que a Bíblia é verdadeira significa dizer que ela é literal. O sentido pleno de um texto é seu sentido literal. Como resultado, acabamos impondo nossa posição como a única possível e, com frequência, excomungamos aqueles que discordam de nós. Uma investigação mais atenta à natureza da tipologia e do simbolismo bíblico pode nos ajudar a desenvolver uma postura mais tolerante às pequenas diferenças. Por outro lado, se descambamos para um hipersimbolismo em que precisamos encontrar uma explicação simbólica plausível para cada elemento das profecias do Apocalipse, por exemplo, corremos o risco de gastar tantas energias com minúcias insignificantes que acabamos por perder de vista o retrato de Cristo que nos é apresentado nesse e em outros textos do Novo Testamento.
2. o cognitivismo religioso
Com o surgimento de um novo paradigma educacional fortemente influenciado pela relatividade e pela física quântica e a adoção das metodologias construtivistas dele derivadas que, a despeito de suas alegações em contrário, se desenvolvem como metodologias essencialmente cognitivistas uma vez que seu foco principal é a construção do conhecimento, tendemos, cada vez mais, a imaginar que ter conhecimento é a marca identificadora do cidadão autônomo e livre. Se aplicarmos essa lógica ao âmbito religioso, o conhecimento da doutrina passa a ser um elemento definidor da fé de uma pessoa. Está aí uma razão por que os debates teológicos estão tão ao gosto dos membros de nossa igreja. Para ser justo, devo reconhecer que tais debates fazem parte de nossa herança denominacional desde épocas que muito antecedem à sedução de nossos educadores pelas propostas construtivistas, mas temo que nossa adesão, cada vez maior, a essa prática educacional voltada para os aspectos cognitivos levem à hipervalorização dos elementos doutrinários em detrimento das experiências de fé e graça que devem ser os elementos centrais da vida cristã: “porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef. 2:8). Não devemos abrir mão do papel relevante que temos dado à revelação divina como expressa no relato bíblico, mas é preciso compreender que a língua é mais do que as regras da gramática e que saber acerca das coisas que Jesus ensinou não nos isenta de praticar as coisas ensinadas por Ele.
3. o individualismo
            O individualismo é o filho primogênito do construtivismo. A reflexão é a meta essencial do paradigma educacional emergente e, para que ela ocorra, muitas vezes é necessário que o indivíduo seja priorizado em detrimento do sujeito. Nessa perspectiva, a construção do conhecimento deve se dar com autonomia e de forma individual. Isso não significa que não haja espaço para a interação social, mas essa acaba subsidiando a aquisição do conhecimento e não a formação de valores. A valorização do indivíduo em detrimento do sujeito acaba por implicar que as necessidades da pessoa devem se sobrepor às exigências da sociedade. Cada um precisa encontrar seu próprio caminho e sua própria felicidade: a ética se torna uma questão de ótica e todas as formas de pensar o relato bíblico acabam relativizadas.
4. a incessante busca de novidade
Como resultado da sociedade capitalista na qual vivemos e que nos induz a um consumismo inconsequente em que nosso sucesso como pessoas é medido pelo novo modelo de aparelho celular que exibimos ou pelo televisor de plasma que transformamos no altar da família, experimentamos um verdadeiro comichão em busca de novidades: “porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências” (2 Tim. 4:3). Trata-se de verdadeiro “complexo de eureka” que, menos prejudicial quando fruto da expectativa criada por descobertas científicas como os papiros de Herculâneo, os Rolos do Mar Morto, os achados de Nag Hammadi, entre outros, descamba para a invenção de forças perseguidoras camufladas. Não que os cristãos fiéis não mais sejam perseguidos, longe disso! Qualquer um que tenha frequentado uma universidade ou um local de trabalho secularizados sabe que a perseguição aos cristãos ainda está em voga. Mas nunca fui capaz de compreender por que alguns têm que fazer circular documentos de sua própria fabricação que apontam para uma conspiração contra o remanescente fiel, que acaba nunca se desencadeando.
5. o romantismo
            O romantismo é, acima de tudo, uma atitutide emocional doentia, tendo ficado conhecido na história como o “mal do século”. O romantismo é uma rejeição da realidade e uma opção por uma vida fantasiosa, uma abstração mental criada por aqueles que dele padecem. Essa deformação da realidade é geralmente acompanhada de um sentimentalismo exacerbado que beira o erotismo. Quando damos rédeas soltas ao pensamento religioso e quando este não sofre restrições por parte da razão, é possível que a figura de Jesus assuma os contornos da de um verdadeiro amante. O poder de persuasão do romantismo religioso é bastante forte. Mesmo uma pessoa geralmente tão racional como Albert Schweitzer acabou sucumbindo a ele no final de sua obra The quest for the historical Jesus (“A busca pelo Jesus histórico”). Uma vida de comunhão com Cristo produz sentimentos de enlevo genuínos e benéficos, mas uma religiosidade emotiva pode produzir sensações de bem-estar que não passam de mera imitação da real experiência religiosa: “eu fui ao jardim, bem a sós, à fragrância pura e celeste; pude então ouvir, doce e meiga voz, a voz gentil do Mestre.” Se uma experiência como esta não for fruto de verdadeira comunhão com Cristo, ela pode simplesmente indicar que o crente sucumbiu ao romantismo religioso. A ótica do consumo que sugere que as necessidades dos homens os impelem para os objetos e que cria tais necessidades por meio do marketing, da propaganda e das produções holywoodianas acrescenta uma dimensão materialista a essa exclusão máxima do mundo real.
            O que quero sugerir, aqui, é que, embora a nova busca pelo Jesus histórico tenha incorporado metodologias que operam contra as principais denominações cristãs de nossa época, ela pode ser também um reflexo de nossas próprias inadequações com respeito à interpretação da pessoa de Jesus e de como o apresentamos àqueles que nunca tiveram um encontro pessoal com Ele. Se pudermos diminuir a importância que muitos cristãos agora dão a elementos como o literalismo, o cognitivismo, o individualismo, a busca de novidades e o romantismo, talvez possamos ter mais sucesso em canalizar essa busca por Jesus em uma maneira mais positiva e que realmente conduza a sua pessoa histórica.
A Tentativa de Descobrir a Autoconsciência de Jesus
            A topografia do eu, como proposta por Freud, tem exercido uma poderosa influência nos estudos acadêmicos acerca da pessoa de Jesus. Segundo Freud, a verdadeira identidade de uma pessoa só pode ser descoberta depois de vários anos de psicanálise. Assim, os cientistas têm tentado analisar a pessoa de Jesus a fim de descobrir quem Jesus pensava que era. De acordo com eles, construções criativas por parte da igreja primitiva moldaram as crenças em Jesus e, por isso, requer-se, agora, um verdadeiro trabalho de detetive para se descobrir a autoconsciência de Jesus. O modelo dialógico de Vigotsky propõe que quanto mais conhecemos nosso “eu”, mais descobrimos o “outro”. Dessa forma, muitos cientistas propõem, hoje, que quanto mais os discípulos criavam sua própria identidade, tanto mais eles também criavam a identidade de Jesus. Jesus teria, assim, se tornado o Cristo principalmente por sua interação com os discípulos. Essa leitura processualista do desenvolvimento humano, conforme proposta por Norbert Elias, tem trazido os olhares construtivista e interacionista para a dimensão sócio-psicológica da compreensão humana e defendido o que se tem convencionado chamar de conexionismo. Todos os seres humanos estariam, assim, intimamente ligados em uma rede de consciências, daí nossa necessidade de sentir-nos parte de um mundo globalizado e, por isso, gastar tanto tempo com a internet e com as comunidades virtuais.
            Essa postura radical que contempla a identidade como um processo e não como uma substância pode, sem dúvida alguma, exercer uma influência negativa sobre a cristologia da igreja. Por outro lado, ela nos conclama a uma posição de maior humildade em face da necessidade de uma compreensão mais profunda da identidade de Jesus. Não deveria surpreender-nos que as pessoas tenham dificuldades em aceitar a encarnação. Esse episódio evangélico se-nos afigura mesmo como uma escandalosa ruptura com a história, que nunca havia testemunhado um fenômeno dessas dimensões e com implicações tão incomensuráveis. Não é difícil aceitar uma versão mais fraca dessa teoria. É verdade mesmo que nos tornamos quem somos através das estórias que as pessoas contam a nosso respeito e as estórias que nós mesmos contamos a nosso respeito. Não seria algo surpreendente se Jesus tivesse se tornado humano através de sua interação com outros seres humanos, precisamente do modo como nós mesmos fazemos. Não seria tampouco surpreendente se Jesus tivesse se tornado mais e mais consciente acerca de seu papel como Messias à medida em que seu ministério transcorria em direção àquele momento fatídico quando entregaria sua vida pela raça humana. O que não podemos aceitar é que a ideia de sua divindade tenha surgido unicamente da necessidade que os discípulos tinham de construir uma identidade para o Messias que queriam contrapor às autoridades romanas ou a qualquer um que se-lhes opusesse. O homem Jesus é, de certa forma, o produto de sua encarnação e vida entre os homens, mas o Deus Jesus, não. Este transcende as esferas do tempo e do espaço e se estabelece como Criador e Redentor da humanidade: “porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas” Rom. 1:20.
Conclusão
            A busca pelo Jesus histórico tem sido sempre um empreendimento mais protestante do que católico. Os católicos sempre conseguiram conviver, sem grandes dificuldades, com níveis múltiplos de interpretação bíblica. Contudo, desde 1950 até os católicos estão sucumbindo à necessidade de uma busca pelo Jesus histórico. Poucos empreendimentos teológicos têm tido consequências mais negativas para a Cristandade do que as conclusões do movimento do Seminário de Jesus. O erudito bíblico Jacob Neusner que, mesmo sendo judeu, questiona a agenda do Seminário de Jesus em sua reconstrução do Jesus histórico, disse, recentemente: – ou o Seminário de Jesus é o maior embuste científico desde o homem de Piltdown ou ele significa a completa destruição dos estudos neo-testamentários; eu espero que seja o primeiro caso.
Texto publicado originalmente, com pequenas alterações, em: Ministério, Tatuí, SP, p. 24 - 26, 02 jan. 2007.

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